quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O súcubo




Estereótipos nunca foram o meio mais confiável de se julgar alguém, principalmente quando perseguimos um ideal, que não corresponde com realidade alguma, e que muito menos nos faça bem.
Normalmente, buscamos algo sem sentido, sem valor, só para satisfazer o nosso ego.
Pena que não percebemos a ruina antes que ela chegue, pois assim evitaríamos dor, lágrimas ou até coisa pior.
Vai sair hoje?
Com certeza! Hoje é sexta, e eu estou muito animado.
Te encontro no bar as nove então?
Sim, estarei lá.
            Gabriel amava as sextas feiras, a diversão, as conquistas, já Vitor tinha mais prazer com a companhia do amigo, que com a badalação que ele buscava. Gabriel queria viver intensamente, mulheres, bebidas, diversão, mas nunca estava satisfeito com o que conseguia. Sempre buscava algo a mais, algo que ele criava em suas fantasias.
Você busca algo que não existe. Disse Vitor.
Não é bem isso. explicou Gabriel Busco um corpo atlético, um rosto lindo e uma mente inteligente, tudo combinando comigo.
Vitor ria ao ouvir o amigo relatando como seria alguém ideal, provavelmente era uma máscara para alguma insegurança que ele trazia. Mas algo surpreendente aconteceu naquela madrugada. Sentada sozinha no balcão estava uma moça que passou a chamar muito a atenção de Gabriel.
Onde você está indo? Perguntou Vitor.
Veja aquela moça, que está ali sentada.
A loira?
Sim. Preciso falar com ela.
Ele seguiu em direção ao balcão, estava ansioso, e era algo incomum para alguém como ele. Mas aquela moça realmente aguçou a sua curiosidade.
Olá! Cumprimentou ele.
A moça o olhou dos pés à cabeça, sem demonstrar nenhuma empolgação com o cumprimento, fingiu que não era com ela. O amigo que acompanhava a distância não se conteve e riu. Gabriel voltou sem graça, nunca havia passado por isso.
Cadê o conquistador? Perdeu o jeito?
Perdeu o jeito, perdeu o jeito. Retrucou Gabriel com certo deboche e impaciência na voz. - Só comecei.
A indiferença da moça era como um desafio, rejeição era uma coisa que ele não estava acostumado. Ele a olhava no balcão, um misto de desejo e raiva crescia cada vez mais. Ela realmente parecia estar sozinha, não via motivos para que ela o rejeitasse daquele modo. Por mais que o amigo dissesse que ele estava dando importância demais a algo pequeno, ele não o escutava sentia o ego ferido.  A única coisa que conseguia pensar era em tê-la.
Entre uma cerveja e outra, ele viu que um rapaz robusto se aproximou dela. Os dois pareciam íntimos, ela sorria ao conversar com ele.
Esquisito aquele cara! Observou ele.
Não é esquisito, só está me parecendo ser o namorado dela, e isso está incomodando você.
Gabriel decidiu desligar-se por um tempo do seu objeto de desejo, afinal Gabriel era grande, mas o companheiro dela era bem maior, uma briga com ele e com certeza não sairia vitorioso.  Mesmo assim a beleza dela continuava a enfeitiça-lo, percebeu que algumas vezes ela o olhava, só que ele ficava constrangido em retribuir, achava que ela provavelmente havia comunicado ao namorado a investida dele.
Aquela sexta foi diferente das outras. Ele foi surpreendido, descobriu que nada era tão fácil quanto sempre achou ser, alguém mostrou algo diferente a ele. E o pior, outro estava com a moça que ele não tirou da cabeça durante o fim de semana todo. Achava que jamais iria encontra-la novamente, quantas mulheres ele conheceu e uma única foi capaz de deixa-lo sem chão apenas por rejeita-lo. Na sexta seguinte foram ao mesmo bar, ele não escondia a ansiedade em poder vê-la entrando, mas nada, ela não apareceu lá naquela noite, sumiu como se jamais existisse.
Vitor achava que ele estava levando o fora a sério demais. Gabriel estava deixando o lado conquistador que tinha de lado por um capricho maluco e sem esperanças.
Quando já não tinha a menor esperança de vê-la novamente, ela passou por ele em frente ao trabalho. Ela parecia triste e Gabriel percebeu que ela chorava. E sem pensar duas vezes ele foi atrás dela.
Posso ajuda-la? Perguntou ele.
Não é nada demais, logo passa.
Pelo modo como você está, não me parece ser algo tão simples. Venha vamos tomar um café e você se acalma um pouco.
Os dois entraram em uma cafeteria próxima, ela parecia abalada com alguma coisa. Ele ficava quieto somente olhando e esperando que ela se recuperasse e pudessem conversar.
Às vezes, algumas pessoas nos machucam sem motivos. Desabafou ela.
Não sei o que a faz tanto mal assim, mas saiba que isso passa.
Me chamo Sanadih. Disse ela estendendo a mão.
Gabriel.
Obrigada por me ajudar, estava muito nervosa e andava sem rumo.
Eu conheci você a duas sextas feiras atrás. Acho que você não vai se lembrar.
Desculpe, mas, não me lembro mesmo.
Você estava com seu namorado. Um grandalhão.
Ex-namorado. Por isso estou assim hoje.
Ele não conseguiu esconder o sorriso ao ouvir que ela estava livre, sua pequena obsessão poderia ser saciada agora, pediu então dois cafés. Ela falava sobre sua decepção, já ele ouvia nos relatos a oportunidade que precisava, a sorte finalmente havia mudado. Conversaram por horas, a tristeza dela aos poucos era substituída por risos, pois, ele tinha uma forma engraçada de pensar sobre algumas coisas, e ela se divertia com isso.
Ele contou que era investidor, tinha um escritório em sociedade com um grande amigo, o que estava com ele no dia que a viu pela primeira vez, e não ficou nem um pouco surpreso quando ela disse que era modelo fotográfica e que organizava eventos de diversos artistas pela cidade. Um tempo depois ela disse que precisava ir. Ele pegou um cartão entregou a ela e ela fez o mesmo.
Posso te ligar, convidar você para tomar alguma coisa? Perguntou ele.
Pode sim, gostei da sua companhia.
Durante o restante da semana ele se segurou ao máximo para não se afobar e ligar antes da hora, precisava deixar para sexta, torcia para ela não ter nenhuma recaída com o brutamontes que ela namorava, e que quando ligasse ela aceitasse o convite.
Definitivamente você achou o que procurava. Afirmou Vitor.
Creio que sim.
Ele segurava o cartão dela, branco com os dados escrito em rosa claro, e algumas flores pequenas no mesmo tom de rosa adornando. Vitor puxou o cartão olhou um pouco.
Sanadih? Nome bem diferente não acha? Comentou Vitor.
Sim, não dá nem para saber a origem dele. Gabriel terminou a frase e pegou o cartão de volta.
Na sexta à noite os dois saíram. Foram em um bar diferente dessa vez, mas por coincidência lá estava Sanadih. Agora ela foi bem mais receptiva, e sorriu ao vê-lo entrar.
Chame-a para junto de nós. Sugeriu Vitor.
Você não se importa?
Não, mas eu iria gostar mais ainda se ela estivesse com uma amiga. Mas como sou teu amigo vou quebrar essa, e ver se arrumo uma paquera aqui. Brincou ele.
            Gabriel foi até Sanadih, para convidá-la a se sentar junto com eles, ela aceitou de imediato, se apresentou a Vitor, que muito curioso com o nome exótico que ela tinha perguntou a origem, ela disse que era um nome muito antigo, que o pai havia escolhido, pois na terra dele era o nome de uma flor. Quando ela falou do pai, eles perceberam que os olhos dela brilharam muito.
Você ama muito seu pai, não é? Perguntou Gabriel.
Ele morreu quando eu era pequena. Nós éramos muito ligados.
Apesar do minuto de constrangimento, devido a tristeza que ela demostrou ao falar do pai, eles continuaram a conversar descontraídos. Ela o encantava cada vez mais, inteligente, divertida, um perfume absolutamente envolvente, e o vestido verde que acentuava sutilmente as curvas do seu corpo.
Vitor depois de um tempo resolveu deixá-los sozinhos, percebia o olhar cada vez mais apaixonado do amigo, e sabia que era a primeira vez que isso acontecia. Sanadih parecia um pouco tímida, pois mexia na bebida bem devagar, só que para Gabriel ela estava encantadora, ele não resistiu mais e tocou as mãos de Sanadih, que correspondeu e o deixou mais tranquilo para tentar pedir um beijo. E ela concedeu.
Ele estava cada vez mais certo de que havia encontrado alguém especial, estava seguro e disposto a conquistá-la cada vez mais, queria agradá-la, cuidar dela. Ela parecia um anjo, de longos e lisos cabelos dourados.
A noite passou rápido, nem perceberam o tempo correr, até ela dizer que já era hora de ir embora, e ele mais que depressa fez o convite para irem almoçar juntos no dia seguinte.
Convite aceito. respondeu ela Me busque amanhã à uma da tarde.
Ela saiu, esperou o manobrista trazer seu carro, um quatro por quatro vermelho, e partiu. Gabriel entrou em seu carro, seguido por Vitor, que no caminho comentou:
Você está correndo perigo.
Por que diz isso?
Está correndo risco de se apaixonar por ela.
Não acho que isso seja perigoso. Sorriu ele.
No dia seguinte, na hora combinada, Gabriel estava na porta do edifício onde Sanadih morava. Ele viu o ex-namorado dela passar por ele, subindo a rua. Ficou preocupado, ele poderia ter ido procurar por ela. Assim que ela desceu, Gabriel a fez entrar rápido no carro.
Vi que seu ex está rondando por aqui. Ele procurou por você?
Às vezes acho que ele gosta de me fazer mal.
Logo ele irá deixa-la em paz. Quer ir onde?
Hummmm.... ela fazia charme para escolher um lugar Gosta de comida japonesa?
Sim. Então vamos comer comida japonesa.
Os dias com ela se tornavam cada vez mais interessantes. Descobrir as coisas que ela gostava, unir as coisas em comum, a fascinação que ela tinha por culturas antigas, ás vezes mostrava tanto conhecimento sobre essas civilizações, que parecia ter vivido lá, o que obviamente era impossível. Para que isso fosse verdade, ela teria que ter uns mil anos de vida no mínimo, só para viver tudo que parecia ter vivido, mas era interessante ouvi-la dizer. Os tempos de farra estavam terminados, ele só tinha olhos e desejo por ela. O ser mais fascinante que poderia ter encontrado. Ele estava ansioso para que passassem para a próxima fase do romance, então a chamou para tomarem uma bebida em seu apartamento. Ficou inseguro, com medo de uma negativa, mas quando teve um sim, mal pôde conter a alegria. Às oito horas da noite Sanadih tocou a campainha do apartamento de Gabriel, ela estava linda como sempre.
Ele o beijou de uma maneira muito mais intensa, serviu uma bebida a ela, se olhavam de uma maneira muito mais provocante da qual costumavam fazer.
Eu sei quais são suas intenções quando me convidou para vir aqui.
E quais são?
Minhas atitudes podem assustar você, não quer deixar isso para lá?
Nada me assusta, estou envolvido demais para me deixar levar por bobagens. Me diga o que poderia me assustar.
Sou intensa, e sei que isso assusta um pouco. Sorriu ela indo pegar um pouco mais de bebida.
Ele se levantou e a beijou no pescoço.
Quero ter você, quero que seja intensa, quero que seja minha.
O vestido dela caiu, assim que ele desfez os dois laços dos ombros. E ele ficou ainda mais encantado ao vê-la nua.
Ela era realmente intensa, e ele estava à mercê dos caprichos que ela escolhia. Amaram-se de uma maneira como jamais ele havia feito com alguém. Depois, cansados, deitaram cada um de um lado na cama, ele fazia carinho no braço dela e ela no rosto dele. Um pouco depois, ela reparou que já estava muito tarde.
Preciso ir.
Dorme comigo? Pediu Gabriel.
Não posso. Nos vemos no próximo fim de semana.
Ela então se despediu com um beijo, arrumou-se e foi embora. Ele passou os dias lembrando dela, estava um pouco desanimado por achar que o tempo não passava mais rápido. Até que novamente estavam juntos, como na primeira vez. A intensidade dela era fascinante, ele poderia facilmente se acostumar a se deixar dominar por ela, só queria que ela fosse dele, quanto mais a tinha mais a queria. Seus pensamentos, suas ações, agora pareciam girar em torno dela. Sanadih acabava de se tronar o centro de seu mundo.
Os dias foram passando, e Gabriel rendia cada vez pior no trabalho. Desatento, andava cada vez mais cansado e sonolento. Suas noites de sono eram cada vez piores.
O que está acontecendo com você Gabriel? Anda cansado, indisposto. Questionou Vitor.
Acho que não estou dormindo bem, só isso.
E esse seu relacionamento, não sei se você está conseguindo ver o quanto está obcecado por ela.
Engano seu. Sanadih me faz bem, consegue me fazer descansar quando está comigo, só nas noites que ela passa comigo é que durmo bem.
Vitor começava a achar estranho o modo como o amigo vinha se comportando, os olhos dele já não tinham mais a mesma vitalidade de antes. Andava apático, sem energia nenhuma. Pediu que ele procurasse um médico com urgência, mas Gabriel se recusou, sempre achando que seu problema se resolveria no momento em que conseguisse firmar um compromisso mais sério com Sanadih, pois ela era sua escolhida.
Até que, certo dia, finalmente chegou com a felicidade estampada no rosto! Finalmente ele havia pedido Sanadih em namoro e ela aceitara. Vitor percebeu que mesmo assim o amigo se mantinha estranho, apático. Resolveu por conta própria procurar qualquer coisa relacionada aos sintomas de Gabriel. Pesquisou desde assuntos científicos a assuntos místicos, tudo que pudesse fazê-lo ter argumentos sobre perdas de energia. Entre os assuntos místicos, um em especial chamou a sua atenção: falava sobre um ser demoníaco chamado Súcubo, um demônio feminino que seduzia os homens e sugava suas energias, até levar o escolhido a morte. Seres originados da mistura de anjos ou deuses com humanos. Sanadih se enquadrava perfeitamente na descrição de um Súcubo: era linda, inteligente, um olhar brilhante, um pouco misteriosa, sempre que falava sobre as civilizações antigas, parecia ter realmente estado lá, como se tivesse conhecido cada figura histórica ou cada cidade que hoje nem existe mais. Mas ela teve um namorado antes de Gabriel, então provavelmente não era um, a não ser que o namorado fosse outro tipo de demônio. Vitor contou a Gabriel sobre esses seres, os dois nunca foram dados a acreditar nisso, mas Vitor parecia até cogitar que a possibilidade realmente existisse. Vitor pesquisou pelo nome Sanadih, tentou relacionar com alguma flor, como ela havia dito ser, porém não existia. Resolveu então, como que por intuição ou desconfiança, pesquisar na lista de possíveis nomes de súcubos, e lá estava Sanadih. Gabriel riu da comparação, como sua Sanadih poderia ser um monstro? Ela poderia ser complicada em alguns momentos, ciumenta em outros, mas muito longe de ser o que ele havia pensado.
Se ela fosse um Súcubo, Vitor, como poderia ser detida? Ele riu ao fazer a pergunta, mas estava muito curioso.
Se ela for um mesmo um, ela é um predador de humanos, está no topo da cadeia. Você precisa ter muita sorte de um outro Súcubo querer enfrenta-la. Ou de cair nas graças de um anjo. Caso contrário está condenado.
Vou fingir que não ouvi isso, mas se te faz feliz, vou procurar um médico no início da semana. Mas por enquanto vou para casa, preciso buscar Sanadih agora, ela vai passar o fim de semana comigo.
Quando Gabriel e Sanadih conversavam no sofá, aninhados, ele resolveu comentar com ela sobre a delirante ideia de Vitor, de que ela fosse um ser das trevas, um Súcubo.
Ela ficou quieta ouvindo tudo que ele dizia, riu um pouco. Mas de repente os olhos dela brilharam mais intensamente.
Vocês humanos sabem muito pouco sobre meu povo. Disse ela levantando.
Sanadih, não precisa entrar na paranoia dele.
Você lembra quando eu disse que meu pai havia morrido quando eu era pequena?
Lembro, mas o que tem uma coisa com outra?
Meu pai era considerado um anjo por algumas culturas e um deus por outras. Morreu de forma covarde tentando defender a mim e minha mãe, uma humana, da ira dos outros deuses. Eu sou na verdade de uma raça mista, sou uma Nefilim. Mas vocês humanos sempre gostaram de enfeitar tudo, já nos chamaram de semideuses, de demônios, e também até de anjos. Quando na verdade tudo se resume apenas em Elohim, humanos e Nefilins.
Que brincadeira é essa? Sei que você ama cultura antiga, mas daí a ser um demônio, um ser milenar é ridículo.
Nós Nefilins precisamos de mana para viver, coisa que vocês humanos têm de sobra.
Quanto mais ela prosseguia, mais atônito ele ficava, em sua mente passou a pedir ajuda aos anjos como Vitor havia dito, pois outro Súcubo para enfrenta-la e ajuda-lo seria impossível.
Não adianta chamar os anjos, os que são capazes de interceder por você estão acomodados, inertes até que o líder retorne.
Você lê pensamentos?
Sim, leio e muito bem. Ela tinha um ar sarcástico ao responder.
O que você quer de mim?
Agora só finalizar o que eu comecei. Você acha que me escolheu, mas quem fez isso foi eu. Um predador escolhe a presa, não o contrário.
Ele viu que as unhas dela estavam maiores que o habitual, e eram fortes como garras. Ela sorriu e os dentes pareciam presas. Os olhos brilhavam intensamente.
Eu posso conviver com isso. Dizia ele.
Já tenho minha contraparte. Você o definiu como brucutu. Debochou ela.
Por que me fazer sentir amor por você, se só queria me matar?
Formas diferentes de brincar com a presa. Mas não se preocupe pouparei você dá dor.
Sanadih o prendeu psiquicamente. Gabriel tentou, mas não conseguia escapar. Ela gostava de matar de modos sórdidos, mas queria poupa-lo disso, acabou se afeiçoando a ele de algum modo. Mas não deixou de fincar a garra do indicador direito no peito dele para experimentar o sangue. Depois colocou a mão em cima do ferimento, para curá-lo da marca, ao mesmo tempo que sugava a energia que ele ainda tinha. Ela sabia que não poderia deixar pista nenhuma sobre o que acontecia ali.
Vou deixar o suficiente para que você possa avisar alguém.
Assim que Sanadih saiu, Gabriel sentiu sua vida acabando. Ela fez como disse: deixou o suficiente para que ele pudesse chamar alguém, mas ninguém iria acreditar que um ser como ela pudesse realmente existir, lembrou então do amigo, e teve força somente para mandar uma mensagem a Vitor.

Você tinha razão. E caiu desfalecido, sentindo o restante de energia ir embora.
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segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A índia e o Anhangá


A floresta esconde belezas e perigos. Para alguns, esses perigos podem ser um bom motivo para ficar longe dela, menos para uma jovem e linda índia, que aprendeu a correr velozmente por ela. Ela gostava de sentir o vento em seus cabelos, quase sempre adornados com uma orquídea que colhia pela manhã. Já a mãe da jovem nunca aceitava o modo livre que ela encarava a vida. Sempre que conseguia a segurava. Ensinou-a desde criança a usar arco e flecha, e era extremamente protetora. Nunca a deixava sozinha, se não podia estar por perto deixava alguém em quem confiasse e que conseguisse conter os ímpetos de Ester. 

Ester era cortejada pelos guerreiros mais fortes de sua tribo, sua beleza chamava a atenção de todos. Mas ela sempre rejeitava cada um deles, por mais que muitos fossem do agrado de sua mãe, ela se mantinha indiferente quanto a isso. Muitas vezes isso causava confusão entre todos da tribo. As jovens a achavam orgulhosa por menosprezar guerreiros que elas adorariam ter como companheiros. Já a eles causava mais disputa, pareciam querer o amor dela como um troféu.
Jaci? Chamou um velho índio entrando na oca em que ela e Ester moravam.
Jaci olhou o velho índio com respeito e reverência.
Sim, pajé.
Ester não pode mais continuar sozinha, você sabe que ela é amaldiçoada, Anhangá a quer.
Quando fugi da minha antiga tribo, já foi para protege-la. Mas ela é diferente, não pensa como uma de nós. Não pensa como uma Guarani.
Você já contou a ela sobre a origem dela?
Vou conversar com ela hoje.
Ester passou o dia todo em companhia das poucas amigas que tinha ali, nadaram, pescaram, colheram frutos, tudo que ela sempre gostava de fazer. Perto do início da noite, quando Ester retornava, viu a mãe sentada na porta esperando por ela. Ester já imaginava se tratar da sua aventura do dia todo, ou de ter que arranjar alguém para casar.
Mãe, não fiz nada de errado, estávamos nos divertindo, até trouxe algumas frutas.
Ester mostrou um cesto com algumas carambolas e jabuticabas. Mas nada mudava a posição de Jaci, que estava irredutível.
Vamos conversar hoje. Entre.
Ester entrou e sentou-se ao lado da mãe, estava preocupada. Normalmente teria tomado uma bronca, porém não estava acontecendo isso.
Jaci segurou um pouco a conversa, parecia se preparar para falar, não queria esquecer nada e muito menos deixar Ester com qualquer dúvida.
Ester o que você lembra sobre seu pai?
Só que era um guerreiro, quando vivíamos na grande floresta, e morreu pouco depois que nasci.
Ah, minha curumim! Seu pai não é quem você pensa. Este que você sempre pensou ser seu pai era meu companheiro, mas morreu muito antes de você ser concebida.
Ester não conseguia entender aquilo, pois, cresceu achando que o pai morreu em uma batalha com uma tribo rival.
Sou filha de qual Guarani então?
Você me foi dada de presente, em uma manhã quando eu me banhava no grande rio, um boto nadou por diversas vezes ao meu redor. Assustada, sai rápido da água e ele assumiu a sua forma original. Você é filha do boto, ou melhor, filha de Tupã que se fez boto para se aproximar de mim.
Por isso sou tão diferente das outras, não penso como elas. E por isso alguns me temem, dizem que na mata meus olhos parecem com os de uma onça parda.
Eu fugi da nossa antiga tribo, quando você ainda era pequena. Temia Anhangá, que atacou a tribo e matou duas moças, fez isso como um aviso, disse que quando você se aproximasse da idade que tem hoje viria te buscar, ele dizia que você estava destinada a ele. Nesse mesmo dia três seres nunca vistos antes e vestidos com o povo das estrelas, vieram até mim, eles me disseram para fugir com você, e que não me preocupasse, pois iriam me proteger até chegar aqui. Então uma estrela acompanhou todo o meu caminho durante as noites e durante os dias o próprio Tupã aparecia.
Ester agora conseguia entender o motivo das brigas e discussões quando ela saia e se demorava; a mãe a protegia quando a impedia de andar sozinha, e quando a fazia escolher um companheiro, era porque queria tirá-la das garras de Anhangá. Mas justamente esse era um grande motivo para que ela não escolhesse ninguém ali.
No outro dia logo pela manhã ouviram gritos vindo do centro da tribo, as duas se levantaram rápido e foram ver o que acontecia. Uma mulher gritava pela morte a filha, ela havia sumido durante a noite e pela manhã alguns guerreiros, que foram procurar por ela, trouxeram o corpo dela, pálido e sem sangue. No abdômen estava um estranho símbolo LIX. Ninguém ali sabia o que era. Ester sentiu uma grande tristeza pela morte da moça, mesmo não sendo próximas. Isso a abalou muito.
O dia correu pesado, todos estavam assustados com o acontecido, eram uma tribo pacifica, não tinham rivais, e uma morte estranha como aquela logo os fez pensar que algum espírito maligno poderia estar rodeando a todos.
O pajé era o único que sabia a origem de Ester e o fato dela ser a escolhida de Anhagá. Mas o respeito que tinha por Jaci, o fazia manter o segredo.
Os ânimos foram se acalmando conforme os dias passavam, até que um novo fato aconteceu. Desta vez, foram as mulheres da tribo que acharam um corpo, de uma das jovens que lá vivia. O mesmo símbolo estava marcado no corpo da jovem, mas agora o corpo estava dilacerado, e uma rosa havia sido deixada com sangue ao lado dele.
O pânico novamente tomou conta de todos ali. Agora realmente achavam que estavam lidando com um espírito maligno. O pajé foi convocado às pressas para uma reunião com o líder e todos os mais velhos da tribo. Novamente ele manteve segredo sobre Ester, mas sabia que não poderia continuar por muito tempo.
Jaci já não deixava Ester sair da aldeia, e sempre a fazia treinar e treinar com o arco e flecha. Sabia que Ester precisaria se defender de Anhagá, que a rondava cada vez mais.
Os dias se passavam e os ânimos não se acalmavam. Ester levantava todos os dias querendo sair.
Anhangá não me assunta, preciso sair, fazer alguma coisa, não aguento mais essa prisão.
Anhangá é poderoso Ester, você não vai!
Eu cuido dela Jaci. Falou um dos guerreiros, que era um dos pretendentes de Ester.
Jaci pensou que talvez se Anhangá visse Ester com um guerreiro com o porte de Wanadi, poderia pensar que ela já havia escolhido alguém, e com isso, Anhangá deixaria Ester em paz, então autorizou que os dois fossem.
Ester ainda não se sentia muito à vontade com Wanadi, ele parecia aproveitar a ocasião para corteja-la ainda mais, e ela ficava sem muita ação, estava intimidada e ao mesmo tempo com medo de Anhangá. Ela viu uma linda orquídea roxa em uma árvore e a colocou em seus cabelos, enfeitando-os. Fazia algum tempo que não se sentia assim, livre como gostava, apesar das investidas de Wanadi.
Ela resolveu ser um pouco mais tolerante, e os dois pareciam finalmente se entender. Ester parecia estar mudando de ideia quanto a ele. Era um guerreiro lindo, não podia negar, mas no fundo ela sentia que sua outra parte estava em outro lugar. De repente, ouviram um barulho ensurdecedor na mata próximo a eles. Uma figura translucida apareceu ali. Wanadi reverenciou o ser que viu, e Ester sem entender muito só olhou.
Minha filha, fuja, corra! Wanadi, leve Ester daqui agora. Anhangá está vindo, ouçam os barulhos que ele faz! Ele veio buscar Ester, e o ciúmes dele não deixará que ele lhe poupe Wanadi.
Os dois correram o mais rápido que conseguiram e chegaram a salvo na tribo. Mas ninguém tinha garantias que Anhangá não atacaria a tribo. Os barulhos estavam cada vez mais fortes, pareciam raios cortando árvores ao meio.
O Pajé pediu pela ajuda de Tupã e dos espíritos que habitavam a mata, e um silêncio se fez. Anhangá não enfrentava Tupã.
A tribo não sabia mais o que fazer contra Anhagá, estavam em pânico. O pajé não tinha mais alternativa, teria que contar sobre Ester, ele convocou todos ali para uma conversa. Acenderam uma fogueira, e ele passou a relatar tudo sobre Ester ser a escolhida de Anhagá. Wanadi se opôs a isso, pois para ele, Ester não poderia se sujeitar a ninguém, muito menos a um ser caprichoso como Anhagá, ainda mais ela sendo filha de quem era. Provavelmente Anhangá queria enfrentar Tupã, e escolheu Ester por saber que seria a melhor alternativa contra ele.
Alguns da tribo queriam deixar Ester na mata para que Anhangá a levasse logo. Ela ficava aflita com isso, e Jaci intercedendo por ela disse:
Vocês não viram que Tupã a protege? Isso tudo é uma briga entre os dois, Ester é uma vítima, de algum capricho de Anhagá. Ele a quer somente para confrontar Tupã. E se Tupã descobrir que ela foi dada a Anhangá por vocês, com certeza ele vai se virar contra a tribo que agora protege.
Todos sabiam que Jaci estava certa. Entre tentar deter Anhangá e enfrentar a ira de Tupã, era melhor ficar com a primeira opção.
            Ester agora era protegida de toda a tribo, e prometida de Wanadi. Ela havia aceitado bem sua situação e dentre todos Wanadi era sim a melhor escolha.
Pela manhã, Jaci levantou cedo. Sabia que Ester estava quieta para agradar a todos, e vendo a resignação da filha, resolveu trazer as frutas que ela tanto gostava. Queria tirar dela um sorriso. Chamou uma das moças que tinha mais afinidade com Ester e seguiram para colher jabuticabas e carambolas.
Ester não viu a mãe ao acordar, mas mesmo assim foi preparar algo para comer. A manhã passava e nada de Jaci voltar, Ester começava a ficar impaciente. Agora entendia preocupação que mãe demonstrava, quando ela demorava. De repente ela escutou a amiga entrar correndo.
Sua mãe Ester!!
O que tem minha mãe?
Anhangá arrancou o espírito dela. Ele tocou nela e ela caiu sem vida.
Então se ele quer a mim, ele terá.
Ester parecia decidida. Pegou o arco, as flechas e saiu rápido em direção a mata. A amiga correu até Wanadi, precisava que alguém parasse Ester. O líder da tribo pediu que os guerreiros mais fortes fossem abençoados pelo pajé, pois iriam enfrentar Anhangá.
Ester andava pela mata quando achou o corpo da mãe, ao lado um cesto com suas frutas preferidas. Ester não conteve o choro. Ela havia morrido apenas para lhe dar um presente. Era assustador como alguém poderia ser tão cruel, ele era o espírito que protegia os animais, não entendia qual a ira dele contra Tupã a ponto de faze-la sofrer assim. Um barulho de galhos quebrando começou a ser ouvido em cima das árvores, Ester secou as lágrimas, e pegou uma flecha. Risadas e mais risadas vindas do alto, Ester já com arco e flecha tentava procurar, sabia que só poderia ser ele, finalmente iria enfrentar seu destino.
Anhangá desceu das árvores, e parou em pé na frente de Ester. Era a figura de um rapaz. Ester ficou admirada com a beleza dele, esperava um deus carrancudo e muito velho, e não um jovem lindo como o que se apresentava ali. Ester sabia que não poderia cair nas armadilhas dele, sedução era algo que os deuses usavam muito contra as moças humanas.
Você uma humana? Riu Anhangá.
Ela ficou assustada, ele estava entrando em sua mente e ouvindo seus pensamentos. Ele andava em volta dela, a olhando de cima a baixo.
Como eu procurei por você Lix.
Sinto muito, você perseguiu a pessoa errada por todos esses anos. Me chamo Ester.
Anhangá nitidamente contrariado vociferou:
Não me corrija!! Você só está com esse nome agora! ele se acalmava Nome esse que foi escolhido em homenagem a um dos nomes que sua verdadeira mãe usava: Ishtar.
Minha mãe se chama Jaci!! Bradou ela ainda mais alto.
Você está muito crua para conhecer sua origem, mas eu a ajudo. Vamos!
Me solte Anhangá! Ester Lutava contra ele e em pensamento chamava o único ser que imaginava ser capaz de salva-la. Pedia ajuda a Tupã.
Do que você me chamou? riu Anhangá Não tinha ganhado esse título ainda, mas se for para ficar com você aceito de bom grado. Me chamo Marcus, sou um Nefilim assim como você.
Uma força nova se opôs a ele, jogando-o longe de Ester, e dois outros seres apareceram. Ester mais uma vez admirou cada um deles, especialmente um que era um pouco menos robusto do que o outro que arrastava Anhangá pela mata.
Ele olhava Ester com a mesma admiração que ela tinha por ele. Ester via o confronto do outro ser contra Anhangá com espanto, deuses que duelavam para protege-la, ou eram apenas mais deuses caprichosos querendo enfrentar Tupã.
Viemos para ajudar você. Me chamo Ângelo.
Ester!
Os dois se cumprimentaram com um aperto de mãos, Ester por um minuto sentiu que estava diante de quem ela sempre esperou.
Você não vai ajudar? Perguntou ela.
Argos dá conta do recado.
E realmente deu, Anhangá ou Marcus como ele se apresentou, fugiu e Ester estava finalmente livre dele.
Seus amigos estão chegando Ester. alertou Argos Vamos até a aldeia, e avisaremos que você agora volta a ser responsabilidade dos deuses, não viverá mais com eles.
Não posso seguir com quem eu não conheço. retrucou ela Vocês não controlam meu destino, com que direito querem me impor alguma coisa?
Você é uma Nefilim, pertence aos juízes, um grupo muito especial dentro da sociedade Nefilim.
Juízes?
Sim. continuou Ângelo Somos em sete no total. Mas por enquanto somos só nós três. Em breve mais dois rapazes e duas moças se juntarão a nós. Um dia elas já foram suas melhores amigas, e sei que vocês serão novamente, a amizade que vocês tiveram foi muito forte.
Argos colocou a mão na testa de Ester. Queria que ela ficasse tranquila então a fez lembrar um pouco da vida que teve como Lix. Ela vivenciou alguns sentimentos, e confirmou que Marcus tinha razão, eles já se conheceram um dia, e Ângelo era sim quem ela esperava, os olhos dela agora brilhavam com uma intensidade muito grande.
Os três seguiram em direção a tribo, queriam encontrar os guerreiros no caminho, antes de serem abordados ali.
Wanadi achou estranho os dois acompanharem Ester. Ela parecia tão tranquila ao lado deles. Argos chamou o pajé e explicou tudo a ele, o pajé sabia que o que ele contava era verdade, pois muitas lendas já foram ditas a respeito do povo das estrelas. Ficou feliz e nada surpreso de Ester ser um deles, já Wanadi parecia totalmente contrariado com o destino que ela teria. Ester tentou acalma-lo, e disse que no fundo sempre soube que ela era diferente deles.
O corpo da mãe de Ester foi cremado por Ângelo, ele deu a ela uma cerimônia digna de uma rainha e no fim a agradeceu:
Obrigado, por cuidar dela para mim.

Ester se despediu de todos, colocou tudo que tinha dentro de uma sacola de palha que ela mesma havia feito, e seguiu com Argos e Ângelo, sentia-se segura, sabia que poderia confiar no que viveria dali por diante.
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