quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Dualidade


Do topo de um edifício muito alto, o maior que havia no centro daquela grande cidade, uma moça observava atenta as luzes e a movimentação das pessoas lá embaixo, o vento batia em seus longos cabelos negros, trazendo um pouco de frio. Ela estava usando um longo vestido preto, e protegia os ombros com um lenço escarlate.  
A moça via as pessoas andando de um lado a outro, os carros sem paciência quase atropelavam quem passasse em frente. Daquela altura as pessoas pareciam tão pequenas que lembravam mais um grande e atrapalhado formigueiro. Na maior parte das vezes era isso que ela pensava que fossem realmente, um bando de formigas. Mas logo corrigia sua observação, pois as formigas eram extremamente organizadas, e isso era coisa que não se via ali. Os humanos nem sequer se espelhavam nos insetos, eram mais como grandes carniceiros, arruaceiros e egoístas. Pensar neles a irritava ainda mais, como ela detestava aquela espécie, não conseguia ver nada de positivo neles, nada que pudesse os tornar um dia pelo menos um pouco parecidos com a espécie que deu origem a eles, da qual ela também descendia. Vermes, barulhentos e inconsequentes era como ela via os humanos.
Desviou os pensamentos daquilo, não queria que nada estragasse o momento que ela tanto aguardava, eram tão poucos que não deveriam ser estragados por coisas tão banais assim, principalmente por reles humanos. Lenora esperava ansiosamente a chegada de alguém que sempre amou, os dois pertenciam a mesma espécie, eram descendentes dos mesmos deuses, que um dia formaram a vida humana, porém tinham uma relação diferente com os humanos. Ele compreendia as imperfeições humanas, aceitava os defeitos que eles tinham e a busca deles por essa perfeição, protegia, cuidava deles, mas nunca se mostrava a eles. Já Lenora fazia o que podia para provar que os humanos jamais seriam merecedores da ajuda que ele dava, expunha as mazelas humanas sem o menor pudor, tentava-os, se fosse preciso, de todas as maneiras que ela poderia usar. O poder era a sua forma preferida para tenta-los, os humanos nunca resistiam muito tempo a isso, sempre eram vencidos, e com isso ela afirmava ainda mais que seu modo de pensar era superior ao dele. Lenora o queria a seu lado, queria que ele entendesse o erro que foi a criação e a libertação dos humanos. Como ela poderia amar tanto alguém como ele, alguém que protegia os seres que ela detestava? Mas o sentimento que Lenora tinha por ele era mais forte do que ela. Os dois eram feitos da mesma essência, jamais conseguiria ficar longe dele. Se o universo cria coisas em pares, então ele era o par dela, o único ser que conseguia acalmar e suavizar seu coração, disso ela tinha certeza absoluta.
Conseguiam se encontrar tão pouco... eram os responsáveis por liderar as duas maiores forças opositoras que havia naquele pequeno e esquecido planeta, cada uma dessas forças lutando pelos humanos, uma pelo direito de eles evoluírem, e outra, a que Lenora cuidava, lutava pela extinção desses mesmos humanos. Os humanos os definiriam como o bem e o mal, e ela achava tão simplória essa definição. Perguntava-se às vezes o que era o bem que eles pregavam e o que seria esse mal.
Os humanos não tinham a menor noção do que era a real definição dessas duas forças, preocupavam se com coisas tolas, e não imaginavam o quão vasto era o universo. Lenora conhecia todas as raças que dividiam o cosmos. Era sempre responsável por apaziguar as raças que tinham a intenção de exterminar logo o erro dos Elohim. Era assim que os humanos eram considerados: um erro. Era irônico Lenora fazer isso, pois sempre desejou que os humanos sumissem logo de uma vez, mas ela fazia isso pelo planeta, pelo mundo que ela conhece como lar, achava que aquele orbe era destinado aos da sua espécie, não aos humanos, já tinha tudo planejado, sabia como daria um fim aos humanos, esperava somente o momento certo.
De repente uma brisa leve encostou novamente em seu rosto, sentiu que agora sim, ele havia chegado. Não olhou para trás de imediato, se acalmou mais uma vez, queria desfrutar da alegria de estar com ele, seu coração saltava sempre que o via, e Lenora tentava conter isso de todas as formas. Ele sempre tentava convencê-la de que estava do lado errado e Lenora precisava manter o controle sobre seus pensamentos, para que ele não pudesse descobrir nada sobre os planos que tinha para os humanos, essa era a parte mais difícil desses encontros, controlar um sentimento que parecia incontrolável.
Lenora? Chamou ele.
Ela se virou devagar, queria se acalmar mais um pouco, por mais que milênios houvessem passado, o som da voz dele ainda tinha o poder de deixa-la arrepiada.
Argos! ela se virou para vê-lo Você demorou um pouco mais dessa vez.
Tive alguns problemas antes de chegar.
Não sei por que, você ainda perde seu tempo ajudando os humanos. São dois trabalhos ajudar e faze-los esquecer que foram ajudados.
Eles são responsabilidade nossa, você sabe disso.
Não! Eu não os coloco como responsabilidade minha, pelo contrário. Eu os acho indignos de qualquer ajuda que um de nós possa oferecer.
Sei que você tem rancor, mas deveria rever isso.
Não é uma questão de rancor e sim de lógica. Pense, reflita, sobre o que os humanos já fizeram até hoje, e veja se realmente é aceitável o comportamento deles.
Eles são divididos entre o bem e o mal Lenora. São apenas criaturas imperfeitas.
A meu ver a balança pesa mais para o mal. Sou um ser milenar, já vi tudo que eles são capazes de fazer, e não foram coisas boas. Eu presenciei guerras, matanças, injustiças, fome e todo tipo de misérias, que só eles são capazes de criar.
Argos só ouvia o desabafo dela, ele prestava atenção, e tinha um carinho no olhar, não retrucava nada, queria que ela relatasse tudo que pensava antes de se pronunciar a respeito. E não podia negar que ela ficava ainda mais bonita brava.
Lenora respirava fundo, tentando não descarregar a raiva que sentia dos seres que ela julgava tão inferiores, em quem ela amava.
Já tentei, Argos, mesmo escondido, ajudar os humanos, mas eles sempre distorciam tudo. Eu sempre me arrisquei atoa.
Você só fez isso uma vez.
Não! Foram várias vezes.
Não sabia que você havia tentado ajuda-los mais vezes?
Ninguém sabe. Hoje temos novamente um pouco mais de liberdade quanto a isso, mas se nossos superiores descobrissem na época em que fiz, correria sérios risco. Poderiam até me exilar.
Você sabe que sempre teve a proteção de uma das mais fortes Nefilins que existiram.
Eu sempre soube disso. E você sabe bem, que eu até tirei proveito, mas na época era necessário.
Eu sei e arquei com sua atitude. Argos demostrou sua reprovação e tristeza ao confessar isso.
Lenora parecia não demonstrar culpa ao vê-lo chateado, o que ele passou não foi fácil, mas para ela o que realmente importava era o resultado de tudo, que acabou sendo favorável a ela.
A primeira vez que eu ajudei os humanos, foi quando me apresentei a Boadiceia, com o nome de Andraste. Nós ainda tínhamos sérias restrições quanto a isso, já havíamos feito bagunças demais no destino deles. Ezu, meu pai, estava como o responsável pela Terra. Eu gostava do modo com que o povo da rainha Boadiceia me adorava, eu era a deusa da morte, mas chegar até eles me apresentando dessa forma não daria certo, então assumi a forma de Andraste, a deusa da guerra deles, mas que nós conhecemos um dia por Elenia, pena que ela estava ocupada demais com as brigas em volta dela, se não fosse isso acredito que ela mesma teria feito o que eu fiz. Ela nunca teve medo de Hix e Taranis, muito menos de Ezu. Fazia o que queria e pronto.
Mas eles descobriram que alguém ajudou Boadiceia.
Eu lembro, e sabemos que ela assumiu minha culpa. Mas pelo menos meu intento deu certo.
Até certo ponto. Você nunca foi ligada a estratégias militares e sabe que final foi trágico. Ezu vendo que foi pela interferência de um Nefilim, que o curso natural foi mais uma vez mudado, e aconselhado por Marduk, incumbiu Augusto do exército oposto, e você sabe que fim teve.
Augusto é um guerreiro, não tanto quanto você, mas é. Ele sempre gostou de estar no campo de batalha, mas é um sanguinário cruel. Não entendo você não ter ido se opor a ele.
Eu não podia. Eu, Elenia, Lix e Kenix estávamos sob forte vigilância.
Galaz uma forte vigilância? Não me faça rir. A única coisa que Galaz queria, era se assegurar que Marduk o aprovasse em tudo que fazia.
Na verdade, creio que, Elenia não queria que descobrissem você.
Uma desculpa mais aceitável.
Lenora respirou fundo, na época ela não aceitou a decisão de Ezu e Marduk, ao mandarem Augusto. Muito menos a passividade que Elenia e Argos tiveram. Mas ficou quieta, pois poderia ter sido bem pior. As intervenções de Elenia davam sempre melhores resultados, ela conseguia corrigir tudo como queria, por mais que ela desafiasse a todos para fazer o que julgava certo, acabava se saindo bem com os líderes, num ponto Argos tinha razão, Lenora jamais gostou de guerras, e nunca se interessou em aprender as coisas que Taranis ensinava, só queria aprender a lutar para se defender, as estratégias nunca a despertaram interesse. Por isso passou a interferir pelas áreas que dominava: magia, política e ciência.
Agora um fato que para você será uma surpresa. comentou ela Lembra-se de Ulpianus?
O jurista romano?
Sim! Lenora parecia orgulhosa com o que iria contar Foi eu quem o influenciou a criar o: Viver honestamente, não ofender ninguém e dar a cada um o que lhe pertence. Quando meu pai viu essa centelha de justiça nascendo, mandou que o ajudassem, queria que iluminassem os caminhos do jurista para que pudesse florescer cada vez mais. Ironizou ela.
Mas isso foi um grande avanço. Ele tentava fazer com que ela visse, que realmente havia feito algo bom.
Você por acaso lembrasse disso? Ela mostrou o sinal de positivo virado para baixo. Grandes homens morreram com um sinal como esse. Como você acha que eu posso entender as perversidades humanas, eles eram justos só quando os convinha.
Lembrar daquilo, só a fazia ter mais certeza que os humanos eram mesmo capazes de coisas horríveis. As lembranças vinham cada vez mais nítidas, ele suspeitava que ela havia interferido na vida humana diversas vezes, incluindo negativamente, mas esperou que ela voltasse a relatar tudo.
Tudo que eu fazia para o bem, os humanos deturpavam, eu apareci para vários que se auto intitulavam magos, mas nós sabemos o que é ser um mago. Tentei ensinar curas, terapias e remédios, mas logo viravam drogas alucinógenas ou seitas. Passei a assistir à queda de cada um deles, às vezes eu até as provocava, já que tentativas de auxilio eram sempre erros. Vi coisas horríveis, mesmo quando eles já se diziam civilizados. Mortes em massa, ataques desleais, manipulação de povos, ganância. Argos, eles são feitos desse sentimento. Sempre foram os mesmos, ano após ano, década após década, e nunca mudaram e nunca irão mudar. Eu vi a queda de impérios, vi os horrores das guerras.
Lenora estendeu a mão na direção de Argos, de repente ela fez uma imagem da Terra aparecer diante dele, sob a palma de sua mão. Ela olhava quieta pensativa a pequena imagem da Terra, ele a acompanhava com olhar de admiração, pois a imagem que ela fez era de uma perfeição magnífica.
Um planeta tão pequeno. Lenora olhava com certa melancolia Tão minúsculo perto dos tantos que nós sabemos ter espalhados pelo universo. No entanto somente aqui, na Terra, é assim. Os humanos se dividem de uma forma que nenhuma outra civilização faz, criam barreiras para tudo e impendem a própria evolução, são inescrupulosos, sem noção de coexistência. Todas as outras civilizações são unidas não se separam por linhas imaginarias. Já eles!?
Argos sabia que ela tinha razão, e que isso não mudaria tão fácil, mas poderia. Os rancores dela veem desde quando era apenas uma criança, sabia que Lenora tentava ajudar, mais para tentar agradar ao segundo ser que ela mais amava, do que por suas reais convicções. Argos era o único que a conhecia realmente, que sabia o que seu coração realmente trazia, sabia até melhor que a própria Lenora. Talvez o modo com que ela resolveu ajudar, não fosse o mais correto. Era esse exatamente o medo que os antigos lideres tinham, se os Nefilins interferissem na vida dos humanos, provavelmente iriam ficar cada vez mais contra eles. Poucos eram os Nefilins que conseguiam se manter neutros, auxiliar sem se deixar influenciar pelo escolha nem sempre favorável que os humanos faziam.
Lenora passou a olhar para o céu, que naquela noite, estava lindo. Ela olhava com mais atenção para um ponto específico, parecia até querer achar alguém lá, os olhos dela brilhavam muito, Argos sabia que ela estava com saudades de uma pessoa em especial, e ela queria alcançar seus pensamentos naquele ponto, queria dizer pelo menos um oi, e quem sabe, saber como essa pessoa que ela tanto procurava, estava.
Não acho que ela volte Argos. Suspirou ela.
Por que você diz isso?
A procurei por toda parte, e não a achei em nenhum Nefilim recém-chegado, ou como dizem os humanos nascido, a essência dela simplesmente sumiu. Cheguei a suspeitar da filha de Cazzin e Zorah, mas era Basck, minha querida amiga, que teve uma passagem tão curta.
Não sabia que ela havia morrido novamente.
Os dois estavam tão felizes em ter Basck por perto, queriam realmente dar a ela a oportunidade de se redimir. Cheguei a pensar que a morte de Basck fosse um pretexto para trazer Elenia sem muitas dificuldades. Pois sabemos que Marduk mataria Elenia assim que percebesse que ela estava novamente entre nós.
Mas eles têm uma filha pequena agora não tem? Argos parecia querer sondar Lenora, e descobrir o que ela sabia sobre a criança.
Sim, mas é uma humana. Suspeitamos que seja uma humana perfeita, e se for não sei quanto tempo ela viverá ainda.
Se você achar Elenia vai entregá-la?
Não sei, sigo a Marduk, ele quer saber sobre o paradeiro dela. Nós procuramos incessantemente. Mas nada, não conseguimos achar nada. Senti quando Hix e Taranis aumentaram a influência das suas energias, e eles contaram com ajuda de outros Nefilins, eram muitos para mim, por isso não consegui descobrir o que realmente fizeram.
E então por que você acha que ela foi para Erra?
Para tirar uma energia igual à dela daqui, demandaria a mesma força que eles usaram, mas confesso que preferia que ela estivesse aqui.
Argos percebeu que ela provavelmente não contaria a Marduk se achasse Elenia. Lenora iria omitir o crescimento dela. Por diversas vezes afirmava a si mesma que Elenia estava em Erra, quanto mais ela acreditasse nisso mais fácil seria para esconder de Marduk, onde suas reais suspeitas estavam.
Esqueça esses assuntos agora, temos tão pouco tempo juntos.
Lenora o abraçou, o tempo que tinham era curto e precioso, não iria mais prolongar o assunto, queria ficar com ele em silêncio, sentia que perto dele poderia ser frágil sem medo, sem mascaras, a firmeza com que ele a abraçava dava a ela essa certeza disso, então era melhor aproveitar, afinal não sabiam quando seria a próxima vez que poderiam estar juntos novamente.
Argos percebia a confusão que a cabeça de Lenora era, ela não conseguia se manter firme, oscilava em 
suas escolhas, todas as suas atitudes eram escolhidas primeiro pelo rancor e sentimento de superioridade, depois que ela agia impulsivamente era que media as consequências,  ela era um ser poderoso e no entanto vivia em um conflito milenar, quem sabe um dia ela conseguisse descobrir, o que realmente poderia ser feito de útil tanto para os humanos quanto para os Nefilins, a final são duas raças irmãs que um dia irão ou se destruir ou se unir, a união era algo defendido por Elenia, já a destruição dos humanos é algo que Marduk ainda defende. E Lenora poderia ser de grande importância para os dois lados. 


Primeiro livro disponível na Saraiva On line